Ainda Estou Aqui - Crítica
Longa de Walter Salles traz à tona as cicatrizes deixadas pela ditadura militar no Brasil e relembra a importância da democracia no país.
É sempre bom relembrar os estragos que a ditadura militar causou em todo o Brasil. A tortura, sequestro, assédios e abuso de poder eram recorrentes neste período que teve inicio em 1964 e terminou somente em 1984. Diversos diretores de movimentos cinematográficos como o cinema marginal, decidiram encarar o risco da censura e provocar o público a se questionar sobre os limites que os militares da época tinham sob a população.
Ainda em relação ao cinema, para tratar de um assunto tão delicado quanto a ditadura, gosto de pensar que há dois tipos de diretores: Aqueles que topam mostrar todo tipo de violência com a intenção de sentir o terror da situação. E aqueles que escolhem não submeter o telespectador há presenciar as cenas físicas e decidem abordar o tema de forma menos literal. No caso da obra de Walter Salles, o cineasta opta por seguir pelo caminho de não pesar a mão na violência, deixando tudo oque já sabemos sobre a ditadura (em relação às torturas e outras situações) por baixo dos panos. Essa escolha de não apresentar a violência acaba refletindo muito sobre a história que será narrada e sobre o cuidado do cineasta ao lidar com os temas que permeiam a obra.
O filme retrata a vida da família Paiva (Rubens, Eunice e seus cinco filhos) que vivem no Rio de Janeiro durante um período truculento da ditadura no país. O ponto chave que irá ligar essa família a uma longa historia de luta contra a repressão militar se dá a partir do sequestro do ex-deputado Rubens Paiva. Além do sequestro, ela e sua filha são interrogadas para prestar esclarecimentos sobre Rubens, onde Eunice fica presa por 12 dias na sede do DOI-Codi do Rio de Janeiro.
A figura da Eunice Paiva, atuada brilhantemente pela Fernanda Torres, é um dos pontos mais altos da obra. A personagem não abaixa a cabeça em momento algum para os militares e lida com toda a situação do sequestro de Rubens (Selton Mello) de uma forma que não acabe afetando tanto a vida de seus filhos. Os poucos momentos em que vemos a personagem sentir qualquer resquício de saudade logo é interrompido por Eunice lembrando que tem que ser forte para si mesmo e sua família.
Toda essa ideia da resistência aos militares se mantém por todo o filme, a protagonista durante a obra busca diversas formas de saber sobre o paredeiro de seu marido enquanto lida com o cuidado dos filhos, questões financeiras e a dor de não saber lidar com esse sumiço. A conexão entre a família Paiva é outro fator essencial para se conectar com a historia e os personagens. Oque começa com um questionamento sobre como lidar com a situação, acaba se agravando com uma série de conflitos emocionais e tensões geradas pela falta de respostas sobre onde está Rubens.
Não tem como falar da família sem falar da figura que move a obra, Rubens Paiva. Em determinado momento, Eunice cita que pior que saber que seu marido foi morto e torturado, é justamente não saber o seu destino e nem oque aconteceu com seu corpo. E isso reflete no vazio que o filme proporciona a partir do sumiço de Rubens que muda toda a estrutura daquela casa até então animada, em um ambiente com um clima totalmente pesado, beirando a melancolia por parte de todos os filhos e da esposa. A despedida do personagem de Selton Mello para os familiares é outra cena extremamente tocante, é como se os olhares, beijos e carinhos para cada um deles não fosse o suficiente para valer como um adeus.
Esse vazio é representado varias vezes pela fotografia do filme, que em diversas passagens escolhe retomar lugares e situações que antes eram vivenciadas em conjunto e agora só vemos uma pessoa, ou as vezes nem isso. Ainda dentro das questões técnicas, a fotografia brinca entre a passagem do primeiro para o segundo ato, antes oque era mais colorido devido a típica ideal de família tradicional, após o sequestro, o uso de sombra se torna muito mais frequente e a casa muito menos iluminada, e os momentos em que há um destaque nas coloração ainda passa uma impressão melancólica com o uso fortíssimo de cores frias. A trilha sonora é outra escolha a parte que casa perfeitamente com o filme. As escolhas vão de: Tim maia, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, Caetano e principalmente a música que dá todo o ar para o filme, “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” de Erasmo Carlos.
A direção de Eduardo Salles é tocante. O cineasta sabe muito bem conduzir a história e nos ambientar perfeitamente no Rio de Janeiro dos anos 70, seja pelo ambiente do filme ou através das gravações feitas por uma câmera super 8 e as diversas fotos analógicas. Fora a questão de ambientação, o diretor preserva a imagem de seus personagens e toma o máximo de cuidado sobre como pretende retratá-los.
A figura de Eunice Paiva já idosa, representada pela Fernanda Montenegro no último arco do filme, é outro exemplo de como pode tocar profundamente qualquer pessoa que tenha o mínimo de empatia pela historia da família. Os momentos finais durante o longa são tocantes, fazendo com que o telespectador que não tenha chorado pelo menos uma vez durante a experiência de ver o filme, sinta um nó na garganta fortíssimo. E os créditos finais não facilitam para quem se sentiu sentimentalmente tocado pela obra, eu mesmo senti um aperto no peito tão forte ao ver os retratos analógicos e ver como existia uma vida antes do desaparecimento de Rubens.
Em essência, Ainda Estou Aqui não é só um filme denúncia como também é um longa metragem sobre lembrança. A obra não se prende ao fato de nos recordamos sobre como a ditadura foi cruel em diversos aspectos, mas sim lembrarmos com uma certa admiração as figuras politicas, estudantis, sindicais e até de trabalhadores que sofreram as piores represálias que se pode imaginar e ainda assim lutavam pelo fim de uma repressão e pela instauração de uma democracia em nosso país. E refletindo sobre tudo oque pude assistir, digo que não há nada melhor que uma obra que preserva tão bem a figura de pessoa como Eunice e que seja filmado de uma forma tão respeitosa.
Nota para “Ainda Estou Aqui”: 5/5
FICHA TÉCNICA - AINDA ESTOU AQUI (2024, Brasil, França).
Direção: Walter Salles; Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega (baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva); Produção: Maria Carlota Bruno, Rodrigo Teixeira, Martine de Clermont-Tonnerre; Fotografia: Adrian Teijido; Montagem: Affonso Gonçalves; Música: Warren Ellis;
Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello, Valentina Herszage, Barbara Luz, Luiza Kosovski, Guilherme Silveira, Cora Mora, Pri Helena, Humberto Carrão, Charles Fricks, Dan Stulbach, Daniel Dantas, Helena Albergaria, Isadora Ruppert, Carla Ribas, Thelmo Fernandes, Caio Horowicz, Maeve Jinkings, Olivia Torres, Maria Manoella, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Fernanda Montenegro; Estúdio: VideoFilmes, RT Features, MACT Films; Distribuição: Sony Pictures; Duração: 2h 17min.